C O L É D O C O
segunda-feira, 26 de março de 2007
O Colédoco a hibernar por tempo indeterminado
terça-feira, 12 de dezembro de 2006
IMAGINÁRIO DO ARTISTA – 8 – TRÊS PALAVRAS OBSCURAS

MEIO, em arte, é o conjunto de elementos que, ao concretizar-se em organização que origina forma, estabelece a comunicação entre o artista e o fruidor ou, noutro plano, é aquilo que possibilita a existência de ACÇÃO sobre o SUPORTE.
SUPORTE, em arte, é o lugar, superfície ou matéria de sustentação no qual se inscreve a ACÇÃO que origina a obra de arte.
A obra de arte, em função destas definições sumárias, integra em si-mesma ACÇÃO, MEIO e SUPORTE, bem como artista e fruidor, nem sempre sendo lícita a distinção e identificação destes termos em presença da obra.
Dizemos: pintar é a acção; as tintas coloridas e os pincéis, espátulas, etc. são o meio; a tela ou a tábua são o suporte.
Dizemos: esculpir (lavrar) é a acção; o cinzel é o meio; a pedra ou a madeira são o suporte.
Dizemos: o projecto de arquitectura (vocacionado para a construção) é a acção; os vazios, os cheios e a sua natureza são o meio; o meio ambiente é o suporte.
Dizemos: compor é a acção; os sons e os silêncios são o meio; o tempo e o espaço são o suporte.
Dizemos: fotografar (como termo lato que inclui também a pós produção da imagem) é a acção; a incidência da luz nas coisas e seres é o meio; o filme, o papel ou o ecrã são o suporte.
Dizemos: dançar é a acção; o corpo humano em movimento é o meio; o espaço e o tempo são o suporte.
Dizemos: performance é a acção; o corpo humano e objectos de natureza diversa são o meio; o espaço e o tempo são o suporte.
Dizemos: body art é a acção; a própria arte, os seus dogmas transfigurados simbolicamente nos objectos que inscrevem, são o meio; o corpo humano é o suporte.
Dizemos: escrever é a acção; as palavras, frases, parágrafos, etc., são o meio; qual será efectivamente o suporte da escrita? – embora nele se apoie a caneta, o papel não será seguramente; mais correcta é a afirmação de que é a língua o suporte da escrita; em última instância é o cérebro humano.
Beuys afirmou: «pensar é esculpir», isto é, pensar (através da arte) é a acção, a própria arte é o meio e o cérebro humano é o suporte cuja morfologia (mesmo que a micro escala) efectivamente muda.
quinta-feira, 17 de agosto de 2006
IMAGINÁRIO DO ARTISTA – 7 – O QUOTIDIANO COMO MATÉRIA DE ARTES VISUAIS


Emmet Gowin
“Edith”, Danville, Virgínia, 1970
“Family”, Danville, Virgínia, 1970


Harry Callahan
“Eleanor and Barbara”, Chicago, 1953
“Eleanor”, Chicago, 1953
Outro meio que tanto se presta à arte cuja fonte de poesia jorra directamente dos espaços e pessoas que nos são familiares, é o meio fotográfico. Tomando o quotidiano como ponto de partida a fotografia, ao dar-nos a ver de novo o que os nossos olhos viram mas de imediato perderam, confere à sensação visual efémera uma perenidade selecta que dificilmente se livra de vacilar na linha de fronteira entre o olhar que reporta e o olhar que transcende.
DOIS FOTÓGRAFOS – EMMET GOWIN E HARRY CALLAHAN
No livro “Emmet Gowin: Photographs” o autor refere-se às fotografias que realizou como «um dever natural que honre aqueles que ama». Desde logo ficamos a saber que o seu compromisso não é com o “mundo da arte”. A sua arte é antes uma dádiva aos seus entes queridos. Diz que as fotografias presentes no livro são parte do seu dia-a-dia e não resultam de projectos ou encomendas. Elogia os snapshots e as fotografias dos álbuns de família como sendo das fontes de imagens mais ricas que conhece. É evidente que a sua arte vai além da recordação de família, essa demanda reside no penetrar, através da arte, fundo nas noções de identidade e de sentimento de pertença (aos lugares e aos entes queridos). Mostrando universos íntimos, logo quando da escolha do enquadramento e composição da imagem antes da fixar, esta vai adquirindo peso simbólico que na imagem se manifesta com forte emoção, entrega apaixonada e espanto perante a vida. Na reflexão sobre si mesmo e sobre a sua condição existencial, o artista extravasa para aspectos essenciais à existência humana, imprimindo à sua experiência pessoal, através da arte, contornos universais. Para além destas evidências conclui-se que o simbolismo destas fotografias “familiares” de Gowin resulta também, em parte, da técnica fotográfica usada. Não que a técnica por si só tenha algum valor artístico, porque só quando surge perante os nossos olhos tão intrincada nas formas e nos conteúdos que seria impossível imaginarmos a obra que observamos configurada de outra maneira, é que se torna digna de registo e admiração. No caso destas fotografias trata-se do efeito de distorção circular exagerado que uma lente Angulon para câmara de pequeno formato faz quando associada a uma câmara Eastman View 8x10. Li algures a opinião de alguém (não me lembro quem) que classificava a estética destas fotografias de “gótica”. Não é essa a palavra que me ocorre. Ocorre-me sim a palavra “expressionista”.
O processo de trabalho usado por Harry Callahan para a conformação da sua arte era, aparentemente, simples e rotineiro: sair de casa quase todos os dias de manhã com equipamento fotográfico, caminhar pela cidade e fotografar. À tarde fazia diversas provas dos que considerava serem os melhores negativos. Deste trabalho sistemático seleccionava pouquíssimas imagens finais. Um método o qual, simplificando, caracterizaria como “coleccionismo e escolha”. Em arte significará o mesmo que procura persistente, análise detalhada e profunda reflexão. As fotografias de Callahan possuem um forte sentido de volume e composição, tomando linha, luz e sombra o protagonismo. Nas imagens mais conhecidas do autor podemos ver a sua mulher e/ou a sua filha, Eleanor e Barbara, em espaços interiores e exteriores, urbanos ou naturais. Ocupe a maioria do quadro ou apresente-se longínqua é a figura humana que cativa de imediato o olhar porque surge sempre do mistério da luz e da sombra. O jogo que presenciamos quando olhamos para estas fotgrafias é bastante complexo. Por um lado, fazendo as pessoas e os lugares parte do quotidiano do artista, em momento algum podemos afirmar que se tratam de retratos – não são representações da personalidade ou dos traços fisionómico-psicológicos das pessoas representadas – nem tão-pouco de descrições espaciais de um lugar, do captar do seu genius loci (embora em outras fotografias de Callahan o genius loci esteja bastante presente). No que à representação espacial diz respeito verifica-se inclusive que estas imagens estão longe de cair na tentação que os dedos dos fotógrafos têm habitualmente por pressionar o botão de disparo da câmara perante motivos de imaginários exóticos ou pitorescos. Callahan, ao tomar como matéria da sua arte espaços e pessoas que definiam o seu quotidiano, não procurou mostrar como são, quem são, ou o que são. A sua poética tende para a abstracção, embora atendendo a quão subtil pode ser a natureza dos símbolos. Por outro lado afirmaria que, sabendo que o autor partiu de um persistente trabalho de recolha, o momento chave da análise dessas imagens terá sido o da descoberta dos signos ou dos significados latentes. Excluindo algumas imagens onde é mais evidente uma encenação criada antes do disparo para obter um determinado efeito, perante outras aparentemente mais espontâneas apetece-me exclamar «E, subitamente, a arte perante os meus olhos!». Terá o autor experimentado uma sensação semelhante ao ver algumas das imagens que ele próprio recolheu? É uma pergunta pouco relevante, pois as imagens aí estão como são e como as vejo, mas provavelmente a resposta é sim. Admitamos então que Callahan, de facto, descobria a arte e a poesia do modo aqui descrito: não penso que a maioria destas imagens tenha sido trabalhada a priori de forma fria e meticulosa, nem tão pouco que tenha sido obtida durante qualquer espécie de devaneio ou arrebatamento sentimental. Penso sim que resultaram de uma atitude expectante, atenta, embrenhada serenamente na crença de que o ambiente perante os próprios olhos é propício a que as coisas aconteçam, não sabendo bem como antes de acontecerem. É possível interpretar estas imagens tentando perscrutar símbolos precisos que poderiam corresponder a factos ou sentimentos relativos à relação do autor com Eleanor e Barbara. Naturalmente Callahan usou esses meios, reflectindo sobre si próprio, transpondo posteriormente a reflexão para os ambientes e pessoas presentes nas fotografias. É assim que se constrói obra. Mas acima de tudo há aqui o fazer arte colocando em confronto na arena da técnica fotográfica seres humanos, espaços interiores e exteriores, objectos, luz e sombra, conseguindo revelar ao relacionar as ínfimas percepções., mais do que a «boa fotografia», a poesia fundada na subtileza e na serenidade.
Curiosamente, ao fazer a minha pequena pesquisa para a elaboração deste texto e já durante a sua redacção, tomei conhecimento de que Gowin foi aluno de Callahan na Rhode Island School of Design, E.U.A. A associação que inicialmente fiz entre os dois artistas-fotógrafos deveu-se apenas à correspondência de dois nomes a dois conjuntos de imagens que espelham resultados diferentes, até mesmo opostos, no tomar da mesma matéria para fazer arte, neste caso, o quotidiano. Não deixa de ser interessante constatar esta outra proximidade entre ambos.
Ter-se-á tornado evidente aos leitores dos meus textos (que os deve haver apesar de em reduzido número) que ao escrever sobre arte a caneta me foge para uma abordagem bastante restrita sobre o que considero arte e que, à partida, rejeita muito daquilo a que hoje se chama “produção”, “mercado” ou, aplicado ao comércio de derivados da música e do cinema, “indústria”. Só muito raramente percepciono arte nestes meios e é esta pura sinceridade, com a qual tento expor por palavras escritas o que sinto e o que penso sobre estes assuntos, que procuro também encontrar nas obras dos artistas. Acredito profundamente que a única resposta que estes podem dar em contraponto à confusão que o comércio de objectos e a indústria do entretenimento estabelecem em redor da arte é serem genuínos e corajosos na manifestação da sua visão do mundo. Os dois artistas-fotógrafos cujas obras (parte delas) eu tentei aqui resumidamente interpretar à luz da minha sensibilidade e modo de racionalizar as coisas, tomaram como matéria de arte a intimidade de factos que aconteceram (provocados ou não para o efeito) perante o seu olhar. Julgo que se tratam de dois bons exemplos, complementares, da temática deste texto posta em prática – partindo com meios simples do mesmo tipo de matéria que pulsa, viva, chegam a lugares muito diferentes na forma, pois diferentes são os homens.
quinta-feira, 29 de junho de 2006
IMAGINÁRIO DO ARTISTA – 6 – VENEZA

Este texto falará de Veneza, mas também de quão difícil é a escrita sobre cidades. Ao dizer o nome de uma cidade sou assaltado por um rol de imagens (muitas pitorescas e de bilhete-postal). Também por outros lugares-comuns. Sei que o que escrevi dificilmente acrescentará alguma coisa à ideia de cidade que os leitores têm; à cidade propriamente dita nada acrescentará seguramente. Descrever uma cidade como Veneza, ou qualquer outra que seja destino de milhares ou milhões de turistas anualmente é, nos dias que correm e com a proliferação de imagens que dá resposta a essa voracidade, tarefa mais do que ingrata, absurda. Mas Veneza é, juntamente com uma meia dúzia de outras cidades, peça importante do meu imaginário, influenciou bastante a minha percepção do mundo (alterou-a mesmo). Não virei as costas às dificuldades da escrita e o texto aqui se apresenta, de viés, contornando as imagens de bilhete-postal que se me impuseram mas afirmando, no entanto, que o lugar-comum constitui cerca de noventa por cento do que me faz gostar de Veneza. Não adianta nada repetir o que foi já dito ou mostrar o que foi já mostrado, e procurei aflorar, dentro do possível, os restantes dez por cento. Para dar, em algumas passagens, o tom ao texto, vali-me da poesia, pois de outra forma não poderia dizer o que para dizer tenho.
É genuíno o meu gosto por Veneza e se pudesse recuar no tempo até ao momento em que me foi dada a ideia da existência de uma cidade com o nome de Veneza, diria que logo fiquei a gostar dela. «Existe uma cidade chamada Veneza» e de imediato emergem destas sílabas ruas imaginárias de antiguidade incomensurável libertando cheiros, cores e sons desconhecidos e longínquos. Liberta-se um sereno mistério da palavra Veneza – V e Z sobressaem numa palavra de vogais fechadas, transmitindo uma noção de exotismo sofisticado que se deve talvez ao facto de V, X e Z serem as últimas consoantes do alfabeto e as últimas que conhecemos quando aprendemos a ler. Saber que existe uma cidade chamada Veneza (onde há palácios que surgem em calmas pracetas às quais se chega por vielas silenciosas, estreitas e labirínticas e por pequenas pontes sobre canais de onde emergem as construções) sem nunca lá ir, seria sempre experimentar o sonho de um mundo encantado, desconhecido e vago, próximo do experimentado pelos leitores do livro que Marco Pólo ditou a Rustichello de Pisa no cárcere de Génova em 1298. Ou mais semelhante ainda às cidades fantásticas que Italo Calvino colocou na boca do mesmo Marco Pólo residente da corte de Cublai Cã, no livro “As Cidades Invisíveis”.
Estranha nisto de gostar de coisas (neste caso de uma cidade) é a ideia de colisão entre características dos objectos de que gostamos com algo que em nós existe. Deverá ocorrer uma colisão desse género, caso contrário o gosto não seria mais que um aleatório capricho que pouco ou nada teria a ver com o objecto do gosto, mas antes e apenas com a psicologia daquele que gosta (o gosto viria suprimir uma necessidade psicológica no prazer da ideia de gostar de alguma coisa, fosse que coisa fosse). Se o gosto existe não apenas porque necessitamos de gostar de coisas, mas porque há uma colisão entre elementos do objecto do gosto e elementos preexistentes naquele que gosta, então existe a possibilidade de aprofundar as causas desse impacto inicial, dessa colisão, e descrever o que o leva a gostar daquela coisa. Uma vez identificados os elementos em “colisão”, ultrapassamos o “primarismo” do gosto e iniciamos a experiência estética, mais rica, mais complexa e também muito mais gratificante.
A descrição do todo que constitui a cidade é tarefa aceite à partida como impossível dada a complexidade das relações entre os elementos que a constituem. Neste aspecto a cidade difere da obra de arte: desta dizemos que aspira a ser compreendida na sua totalidade (embora estejamos conscientes dessa impossibilidade), acreditando que os seus elementos são finitos; da cidade dizemos que tem uma infinidade de elementos e acreditamos de igual modo nela. Da obra de arte esperamos, no máximo, “meia dúzia” de autores; da cidade esperamos um rol interminável de pequenas e grandes contribuições, pois todo e qualquer dos seus habitantes partilha, por assim dizer, dela a autoria. Em vez de autores, talvez possamos dizer mais correctamente que haverá, ao longo dos tempos, actores da cidade. O “jogo” estético que a obra de arte nos propõe residirá talvez na tentativa de descodificar a sua totalidade como obra e de imaginarmos a possibilidade de atingirmos esse objectivo. Da cidade sabemos que, para além de infinita, a sua condição é ser mutável e que o seu “ser-cidade” se definirá, talvez, através de um carácter próprio que persiste apesar da constante mudança. Gostar de uma cidade é, por isso, gostar da ideia que fazemos dela, ou seja, gostar do seu carácter. Transcender o gosto que por ela nutrimos e mergulhar na experiência estética torna-se deste modo possível, porque nos debruçamos não sobre a totalidade do objecto (sabemos que a realidade da cidade se prolonga indefinidamente para além do nosso tempo de vida e que a enormidade dos elementos que a constituem é impossível de apreender por um único ser humano) mas antes sobre o esquema mental que estrutura uma percepção ultra complexa.
Das coisas de Veneza que comigo colidiram, ainda antes de lá ter estado, muito poderia dizer falando por muito tempo – falaria das Venezas que me foram trazidas pela literatura, música, pintura, cinema, fotografia ou banda-desenhada, por artistas como Thomas Mann, Vivaldi, Canaletto, Turner, Visconti, Hugo Pratt ou Carlo Scarpa. Nos mundos da arte como no mundo “real” Veneza é inesgotável. Mas já lá estive e digo por isso de Veneza que é a cidade prodigiosa, ultra adjectivada, onde tão bem viveria pois viveria num permanente arrebatamento poético. Depois de lá ter estado por diversas ocasiões afirmo que o que colide comigo é o facto de Veneza ser uma cidade onírica. O absurdo e a irrealidade que caracterizam os sonhos são realidade quando vagueamos pelas calle, salizzada, fondamenta, ruga, ramo, campo, sottoportego e rio terra de Veneza. Há aspectos curiosíssimos sobre a organização verbal dos espaços de Veneza, que são de uma poética tocante. Há apenas uma piazza, S. Marco. As restantes são chamadas de campo. Fondamenta é uma rua ao longo de um canal. Ramo é uma rua lateral que liga a duas ruas mais largas e, sendo estas canais, o ramo torna-se um beco. Sottoportego é uma viela com passagem em túnel por baixo de um edifício. Rio terra é um antigo canal que foi coberto de terra. Aos palácios dá-se a denominação de Ca’, que é a abreviatura veneziana de casa (salvo algumas excepções como o Palazzo Ducale). A maravilha extrema que Veneza é, e que até na classificação dos espaços se manifesta, emergiu do lodo da Laguna e nele lentamente imerge. O líquido espesso e escuro que, em vez de fluir, pesa sobre os canais de Veneza, esconde um surdo abismo que acompanha o transeunte nas deambulações pelas suas vielas labirínticas. Os hipnóticos reflexos da luz que no líquido incide insinuam-no ao olhar, e este por vezes bloqueia perante aquele apelo turvo. Líquido fétido, mórbido, metáfora terrível das profundezas submersas. Na sua presença intuímos o nosso próprio fim: pensamos que um dia haveremos de morrer e, tal como Veneza, certamente morreremos.
(ilustração: fotografia, da autoria de nuno de matos duarte, captada em Novembro de 1999)
terça-feira, 30 de maio de 2006
IMAGINÁRIO DO ARTISTA – 5 – GERHARD RICHTER E A PINTURA



Óleo sobre tela
65x80cm
“Veneza – Escada com Isa (586-3)”, 1985
Óleo s/ tela
50x70cm
“Grupo de Árvores (628-1)”, 1987
Óleo s/ tela
72x102cm
Tenho o hábito de passear distraidamente os olhos por livros ilustrados. Página após página o olhar espreguiça-se nas imagens que se sucedem, uma, outra, mais outra e mais outra e por aí fora. Períodos há em que revisito frequentemente um mesmo livro ilustrado com este meu olhar preguiçoso e o desfilar das imagens adormece-me, vou deixando de pensar em coisas – letargia cerebral que muito me apraz. Qualquer livro com reproduções de obras de arte merece a minha preferência nesta actividade um tanto absurda, que consiste, no fundo, em estar perante mundos complexos que desfilam sem lhes dar, naquele momento, nenhuma importância. Apenas os vejo, constato que existem e que estão ali expectantes nas páginas dos livros, para que um dia possa mergulhar e embrenhar-me neles.
Houve um período em que três reproduções de outras tantas obras de Gerhard Richter quebravam teimosamente a indolência das deambulações errantes do meu olhar pelas imagens de um livro sobre arte contemporânea. O livro ganhou jeitos e vícios de forma, passando a abrir-se por si só naquelas páginas. Àquela data Gerhard Richter não tinha merecido a minha atenção como artista. Só ao dar-me conta de que aquelas imagens (por sinal bastante diferentes entre si) me interpelavam de algum modo, mesmo sem que sobre elas estabelecesse qualquer raciocínio, é que disse para mim mesmo: vamos lá vencer a preguiça e ver o que estou a ver, vendo, depois, quem é que fez isto e que mais fez ele que possa ser visto.
E que via eu?
Numa das pinturas, sobre um fundo etéreo e profundo, arrastos espessos de cor a espátula e pincel que, ora sobressaindo com violência, ora definindo planos coloridos que mergulhavam no fundo, criavam o espantoso espaço e tempo de um mundo fantástico. Era uma pintura cujos princípios reconheci como sendo semelhantes aos que pautavam à época as minhas próprias tentativas de pintar e que consistiam, resumidamente, na capacidade de a arte aparentar a sua própria génese como mundo, ao mostrar a representação de um espaço impossível que se forma perante os nossos olhos. A minha descoberta pessoal das pinturas abstractas de Richter afectou decisivamente o rumo da arte que procurava fazer na altura porque a minha reacção à mesma foi a de me libertar daquele modo de pensar a génese da obra de pintura, não fosse ela vir a ser confundida com uma imitação rasca da obra de um pintor enorme.
Na segunda pintura nada se assemelha à primeira, excepto a técnica (pintura a óleo sobre tela) e o autor. É desde logo notável constatarmos que o autor das duas pinturas é o mesmo. Mas, se atendermos ainda ao facto de os dois quadros não corresponderem a duas “fases” diferentes da carreira do artista, cronologicamente separadas, mas antes a duas abordagens que se desenvolveram a par, mais notável se torna. Esta segunda imagem, a meu ver transbordante de poesia, possui a aparente banalidade da fotografia de férias, do certeiro slogan da Kodak «para mais tarde recordar». De facto, Richter utiliza fotografias suas, pessoais, como tema dos seus quadros, ou nas suas próprias palavras, usa a pintura como veículo para as fotografias. Pensar sobre esta imagem colocou-me perante a seguinte dúvida: porque consideramos banais as fotografias íntimas, pessoais ou familiares? Por se terem vulgarizado? Pela sua falta de requinte técnico e de composição? Pela sua objectividade? Se formos ao fundo da questão concluiremos que de banal nada têm os valores e temas subjacentes a elas, porque este género de fotografia despe-se de toda a retórica (ou nem sequer a chega a conhecer) para se concentrar nos afectos. Fotografamos aqueles que amamos, os locais onde estivemos e as pessoas com quem estivemos simplesmente para os registar e fazer perdurar na memória através de uma imagem. O valor da imagem não reside em si mesmo, mas sim no amor genuíno que nutrimos pelos objectos e seres nela representados. Tratam-se de imagens muito subjectivas cujo tratamento é o mais objectivo possível. Tornam-se universais porque todos encontram nelas os seus próprios valores. Todos sentem necessidade de fazer este tipo de imagens porque a “democratização” da técnica fotográfica, felizmente, assim o permite. Se há tantos disparates que subitamente parecem ganhar valor apenas porque alguém com acesso ao “meio artístico” os decidiu introduzir na “esfera da arte”, porque motivo seria incorrecto trazer à arte imagens tão genuínas e poéticas, que evocam o nosso passado, aquilo que somos e os objectos, seres e lugares que são essenciais às nossas vidas? Richter fê-lo através da pintura, o que dificultou a tarefa da análise crítica e académica forçados que foram a confrontarem-se com os jogos de linguagens entre pintura e fotografia. Nan Goldin, por exemplo, fê-lo de modo mais directo através da própria fotografia.
Contudo, esta segunda pintura apresenta-nos mais do que o snapshot circunstancial. Não se trata de uma imagem qualquer. O título fornece-nos três elementos-chave: Veneza, a escada e Isa. Ao lermos o quadro da esquerda para a direita verificamos que o meio do quadro é uma fronteira clara: do lado esquerdo a superfície da tela é ocupada por um espaço relvado e árvores protectoras que dão abrigo e sombra; do lado direito é ocupada pela vastidão nublada e azul das águas calmas da lagoa. Ao lermos o quadro de cima para baixo vemos que o meio do quadro é marcado por um caminho de terra batida que, partindo de uma discreta mas misteriosa sombra à esquerda, encaminhou Isa ao patamar superior da escada que desce até à água, mas também até ao patamar mais baixo e próximo do observador do quadro. A atmosfera é extraordinariamente calma, lendo-a eu como uma paz melancólica ao observar a postura introspectiva de cabisbaixo desalento de Isa perante a mórbida lagoa. Isa deixou atrás de si, largado no chão, aquilo que parece ser uma peça de roupa (um véu?). Vacilando entre uma e a outra metade do quadro, o véu (?) posiciona-se na fronteira entre o verde protector e o vazio da lagoa tendendo, no entanto, claramente para o lado da lagoa. Isa terá feito uma escolha? Ao olhar este magnifico quadro não posso deixar de me recordar do destino que os protagonistas dos livros “Morte em Veneza” e “Na Outra Margem entre as Árvores”, respectivamente de Thomas Mann e Ernest Hemingway, foram encontrar em Veneza: a morte.
Da terceira pintura diríamos seguramente tratar-se da coexistência dos dois tipos de quadros atrás descritos, na qual o abstracto mundo de autonomia pictórica se sobrepõe a um outro, figurativo, que revela um profundo e codificado universo interior. Mais do que simplesmente sobrepor-se, o abstracto vai ao encontro do figurativo – aqueles violentos arrastos de tinta, contrapondo-se em textura à velada superfície da representação de uma paisagem com árvores, faz eco das suas tonalidades. É como se o pintor passasse com uma espátula larga pelos restos de tinta da paleta que compôs a pintura figurativa e borrasse, literalmente, essa mesma pintura com os próprios restos que são também, no fundo, a matéria bruta de que é feita – o “Ceci n’est pas une pipe” de René Magrite contado de outra maneira?
terça-feira, 11 de abril de 2006
IMAGINÁRIO DO ARTISTA – 4 – DEFEITOS E VIRTUDES DO CONCEITO DE SÉRIE (2.ª PARTE)

Claude Monet
Da esquerda para a direita e de cima para baixo, quatro quadros da mais extensa série “A Catedral de Rouen”:
“A Catedral de Rouen. A Fachada e a Torre de Saint-Romain na Aurora”, 1894
Óleo s/ tela
106x74cm
Boston, Museum of Fine Arts
The Tompkins Collection
“A Catedral de Rouen. A Fachada, Sol Matinal”, 1894
Óleo s/ tela
91x63cm
Paris, Musée d’Orsay
“A Catedral de Rouen. A Fachada e a Torre de Saint-Romain em Pleno Sol. Harmonia azul”, 1894
Óleo s/ tela
107x73cm
Paris, Musée d’Orsay
“A Catedral de Rouen. A Fachada, Tempo Cinzento. Harmonia Cinzenta”,1894
Óleo s/ tela
100x65cm
Paris, Musée d’Orsay
Se recuarmos até às primeiras tentativas conscientes do uso da série em arte, veremos que nem sempre a ênfase foi entregue ao “como” e que, pelo contrário, a experimentação do “como” provinha do “o quê”. Nos vários quadros que compõem a série da Catedral de Rouen, Claude Monet repete de quadro para quadro a estrutura da composição, fazendo variar a atmosfera e o carácter da luz que sobre ela incide. Observa a fachada do mesmo local mas apresenta dela visões separadas no tempo, fixando-se nas notáveis características escultóricas do objecto. Do indagar à volta da complexidade visual que a ideia de escultura encerra em si mesma, do projectar dessa indagação na fachada da Catedral de Rouen, Monet fez emergir o “método” da série. Opta por representar a fachada parcialmente, ou seja, em nenhum momento pretende apreender ou decifrar do rendilhado de pedra os princípios da geometria latente do edifício. A comunhão que o artista efectua com o objecto que constitui a génese da sua proposta de arte é antes o fascínio pela qualidade da luz que o modela (como se revela a luz no objecto, como aparece o objecto por ela revelado). A transitoriedade da luz, a sua inconstância, escapa-lhe a cada momento. Ao apresentar a multiplicidade das “aparições” do objecto segundo o carácter da luz que o banha, o artista embrenha-se na impossibilidade de aprisionar a verdade da sua forma. A chave para ultrapassar essa impossibilidade descobriu-a Monet mais na invenção da luz, do que na impressão da luz, ao contrário do que poderíamos supor, dado tratar-se o autor daquele que definiu artisticamente o género impressionista.
terça-feira, 7 de março de 2006
IMAGINÁRIO DO ARTISTA – 3 – DEFEITOS E VIRTUDES DO CONCEITO DE SÉRIE (1.ª PARTE)

Bernd and Hilla Becher
“watertowers”
1967-80, (impressão em 1980)
Impressão em gelatina de prata
Cada impressão com 37,9x30,2cm
Sonnabend Gallery
“Anonyme Skulpturen: A Typology of Technical Buildings” (Escultura Anónima: Uma tipologia de Edifícios Técnicos) – assim se referiu o casal Becher à sua obra fotográfica. Ao longo de quatro décadas Bernd and Hilla Becher propuseram-nos arte que consiste numa espécie de classificação funcional e tipológica de arquitectura industrial vernacular, através de fotografias a preto e branco de escala modesta, agrupadas por vezes em grelha. A execução destas fotografias respeita regras bastante rígidas. O corpo da obra dos Becher é habitualmente adjectivado de “aestético”. A meu ver, seria mais correcta a expressão “estética neutra”, porque a sistematização do seu procedimento artístico não é mais do que a persecução de um objectivo estético que resulta na configuração de uma poética que é, em certo sentido, documental – o registo da morte emergente da era industrial. Cada fotografia corresponde a um único objecto arquitectónico, fotografado de frente a meia altura. O posicionamento da câmara fotográfica a meia altura torna visível, na medida mínima, o contexto paisagístico no qual o objecto fotografado se insere, o que permite o entendimento da escala. São escolhidos dias de céu nublado para fotografar pois pretende-se uma luz homogénea que anule o mais possível o efeito claro-escuro, aumentando a gama de cinzentos visível. Todos os eventuais incidentes observáveis, tais como a presença de pessoas, animais ou vegetação são evitados, prevalecendo mais uma vez a objectividade sobre o expressionismo (ou a rejeição completa de quaisquer traços expressionistas). A neutralidade das imagens assim descritas enfatiza a forma dos objectos, pois nela se concentram todos os recursos da técnica artística. Qualquer tentativa de análise do ponto de vista da antiguidade relativa dos objectos fotografados ou do seu contexto social torna-se impossível – impera a forma. A repetição em grelha reforça esta ideia, pois promove a comparação visual directa entre tipos de formas que cumprem uma mesma função prática.
O modus operandi de Bernd and Hilla Becher fez escola e, de certa forma, tornou-se banal reconhecer mérito artístico a quem apresenta objectos que resultam de uma acção sistemática, repetitiva e “impessoal” sobre determinado tema (por vezes não importa qual acção ou o que tema, bastando a “tendência estética”). Este facto não retira mérito algum à força da obra genuína dos Becher, demonstrando, pelo contrário, o seu tremendo impacto nas práticas e pensamento da arte actual.
quinta-feira, 23 de fevereiro de 2006
IMAGINÁRIO DO ARTISTA – 2 – PIAZZA

“Piazza”
1947-48
Bronze
21x62,5x42,8cm
Collezione Peggy Guggenheim, Veneza
Sobre uma “tábua” que representa o espaço da praça, Alberto Giacometti apresenta-nos cinco figuras humanas de pequenas dimensões quando comparadas a figuras isoladas feitas anteriormente pelo autor, nas quais tinha optado pela escala natural. Compreendemos o porquê da miniatura porque o drama que caracteriza esta obra só se torna evidente visto de cima, com o olhar do espectador a abarcar a totalidade da cena. As figuras que observamos na piazza são típicas de Giacometti, matéria bruta moldada directamente com as mãos que dão forma a corpos esguios, anónimos, que parecem dissolver-se na atmosfera e que constituem metáforas impiedosas da condição existencial do homem. Os quatro homens caminham obstinadamente em linha recta, atravessando em diagonais a praça. As direcções e suas posições relativas no espaço indicam que não estabelecerão contacto físico uns com os outros. A determinação cega do seu movimento parece também anular à partida qualquer desvio que os conduza ao encontro. A figura da mulher, imóvel, olha na perpendicular do comprimento da praça e num ponto dessa perpendicular se interceptarão os trajectos dos quatro homens, embora em momentos diferentes. A praça, espaço público por excelência e centro nevrálgico das relações humanas dos habitantes de uma comunidade, surge-nos aqui devastada pela indiferença dos homens. Interpreto a imobilidade da mulher, colocada em confronto com essa indiferença, como uma figura sonhadora, imbuída de humanidade, mas sem esperança.